As academias do ócio O sociólogo diz que os bons pesquisadores fogem das salas de aula para não conviver com a preguiça e o sectarismo dentro das universidades Por Laurentino Gomes Em 1976, o sociólogo Edmundo Campos, 49 anos, publicou Em busca de Identidade: o Exército e a Política na Sociedade Brasileira , para demonstrar que a vocação golpista não era exclusiva dos militares, mas tinha ampla aceitação entre os civis brasileiros. Para uma parte substancial das lideranças civis, segundo ele, a democracia deve funcionar sempre a favor. Quando funciona contra, essas lideranças correm e vão buscar apoio nos quartéis. No ano passado, Campos divulgou um novo trabalho, dessa vez sobre o sistema penitenciário do Rio de Janeiro durante o governo de Leonel Brizola. Ele constatava que a política carcerária dos direitos humanos, pregada pelo ex-governador, era usada dentro das penitenciárias como instrumento de manipulação dos presos pelos chefes das falanges. Nos próximos dias, chega às livrarias uma nova obra de sua autoria, A Sinecura Acadêmica , em que faz um diagnóstico arrasador da universidade brasileira. Diz que os reitores são medrosos e não têm mais a liderança moral do meio acadêmico, denuncia os professores como medíocres e preguiçosos e, finalmente, derruba a teoria de que falta dinheiro para a pesquisa no país. "Dinheiro está sobrando, o que falta são idéias", acusa. Casado, um filho, Campos é mineiro de Governador Valadares e foi militante da política estudantil no final dos anos 50. É formado em Sociologia pela Universidade da California (UCLA) e desde 1969 trabalha como pesquisador do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, o Iuperj. "Este livro não será muito popular nos meios acadêmicos", prevê Campos. "A universidade é hoje um dos locais menos adequados ao debate e à busca da verdade", acrescenta. O problema, na sua opinião, é de ordem ética. Os professores são pagos com dinheiro do contribuinte e têm que dar o retorno que a sociedade espera de suas instituições de ensino superior. Campos recebeu Veja, no Rio de Janeiro, para a seguinte entrevista: VEJA - O que é sinecura acadêmica? CAMPOS - Sinecura é um emprego em que as pessoas não são obrigadas a trabalhar. Houve um tempo em que essa era uma característica exclusiva do serviço público no Brasil. Hoje, é a melhor definição para a universidade brasileira. A universidade nunca teve uma cara tão parecida com a do governo como hoje. É incompetente, burocrática e preguiçosa. VEJA - A sinecura só existe nas universidades públicas? CAMPOS - Não, é geral. Nas universidades particulares existem situações até piores. Escolhi as universidades federais para analisar porque elas ainda são as maiores e melhores instituições de ensino superior do país. Elas são a elite do sistema universitário brasileiro. VEJA - Qual o balanço que o senhor faz do desempenho das universidades federais? CAMPOS - Constatei que a universidade não está dando o retorno pelo que a sociedade paga, em impostos e taxas, pela sua manutenção. Ninguém mais se importa com uma greve universitária que dura cinco meses. O plano inclinado levou a esse ponto. A universidade não faz nenhuma falta, tornou-se abslutamente irrelevante. Existem, é óbvio, ilhas de competência espalhadas pelo país, com bons cursos e programas, professores bem preparados e responsáveis, mas essas são exceções à regra, que são universidades dominadas pelo baixo clero. VEJA - O que o senhor chama de "baixo clero"? CAMPOS - Baixo clero é esse enorme contingente de professores mal qualificados e com titulação mínima, aos quais foi entregue o grosso das funções universitárias. Hoje, é o baixo clero que está nas salas de aula, quando não está fazendo greve ou promovendo assembléias gerais. O baixo clero costuma ser agressivo e raivoso, porque odeia o debate e as idéias de uma forma geral. VEJA - A politização prejudica a universidade? CAMPOS - Uma universidade politizada não é problema. A consciência política e o espírito crítico são virtudes no meio acadêmico. O problema é que a universidade brasileira se tornou excessivamente partidarizada. A autonomia universitária hoje é um mito. Todo o movimento docente está ligado ao movimento sindical. Na hora em que a Central Única dos Trabalhadores, a CUT, determina o rumo de uma assembléia de professores para discutir os caminhos da universidade, acabou a autonomia. A interferência da CUT na universidade é tão nociva quanto a dos órgãos de segurança dos militares. As associações de docentes hoje são as herdeiras do movimento estudantil da década de 60. VEJA - Professores não devem fazer política na universidade? CAMPOS - Existe uma diferença entre a política estudantil e a dos docentes. O estudante é um personagem transitório numa universidade. Matricula-se, faz o curso e vai embora. O professor é permanente. A politização do espaço universitário pelos professores tem um potencial incalculavelmente maior de destruição, que começa pelo uso de sua ascendência sobre os estudantes para cooptá-los para suas causas e termina pela imposição do terrorismo moral. VEJA - Não é exagero falar em "terrorismo" dos professores? CAMPOS - Ninguém hoje tem coragem de contestar os militantes no clima de intimidação das assembléias convocadas pelas associações docentes. Qualquer palestra ou debate dentro das universidades se transforma numa guerra ideológica, em que o que menos prevalece são argumentos de ordem intelectual. Há quatro meses, fui convidado para uma palestra numa universidade do Rio de Janeiro sobre avaliação universitária. Quando entrei na sala, fui de tal maneira hostilizado pela platéia que mal consegui chegar ao final da minha exposição. Essa intolerância mostra uma face perigosamente autoritária dentro das universidades. VEJA - Mas a universidade não está hoje mais democrática que durante os governos militares? CAMPOS - No regime militar, a universidade era vítima do autoritarismo. Agora, caiu no outro extremo: é vítima da falta de autoridade. Ela não soube acompanhar a transição do regime militar para a democracia. Os reitores se recusam a exercer a verdadeira e legítima autoridade, com medo de serem chamados de autoritários. É a síndrome do autoritarismo que assola a universidade. VEJA - Os reitores estão despreparados para o exercício do cargo? CAMPOS - Os reitores estão mais amedrontados que despreparados. Hoje temos reitores sem nenhuma liderança moral sobre a comunidade acadêmica. São pessoas forçadas o tempo todo a tomar decisões populistas para agradar o eleitorado que as elegeu para o cargo. Paira sobre eles a sombra de greves, paralisações de advertência e manifestações nos campi universitários. São tratados como delegados das assembléias de docentes. Há, com isso, um imenso vazio de lideranças intelectuais na universidade. VEJA - Qual a conseqüência da falta de autoridade dos reitores? CAMPOS - Ela gera situações absurdas, como a invasão da reitoria pelos estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tempos atrás. Mantiveram o reitor praticamente como refém e ninguém foi punido. Trata-se de um abuso e de uma noção perversa de democracia e participação. Comportamentos desse tipo acabam sendo um convite à intervenção de fato na universidade. VEJA - É errado haver igualdade entre estudantes e professores? CAMPOS - O igualitarismo do movimento docente é incompatível com a natureza da universidade. A instituição universitária deve ser o lugar das desigualdades fundadas nas diferenças de competência. O professor, pelo menos em princípio, tem mais a ensinar ao estudante do que vice-versa. É nisso que reside a autoridade do professor. Da mesma forma, o pesquisador competente tem mais autoridade intelectual que o medíocre. Essas formas de desigualdade são essenciais à sobrevivência da universidade. VEJA - O senhor é contra eleições diretas para reitor nas universidades? CAMPOS - A comunidade univesitária deve participar e ser ouvida nas questões importantes, como a escolha do reitor. O problema é que hoje existe um jogo estranho. A comunidade faz a eleição direta para reitor, mas concorda em submeter uma lista sêxtupla ao presidente da República. Se o escolhido é o mais votado, ninguém reclama. Se for qualquer outro nome, então vira-se a mesa. Ou seja, primeiro aceita-se a regra do jogo. Se ela funcionar a favor, continua valendo. Caso contrário, promovem-se greves e manifestações de todo tipo. VEJA - Como os cientistas e pesquisadores têm enfrentado essa situação nas universidades? CAMPOS - Esses vivem no melhor dos mundos. De um lado, têm todos os recursos do sistema de ciência e tecnologia do governo, de organismos como a Finep e o CNPq, para desenvolver seus trabalhos. De outro, não têm os aborrecimentos da sala de aula nem o desconforto da convivência com o baixo clero, que é hostil e não tem o menor respeito pela competência. Os verdadeiros cientistas têm medo de enfrentar as reuniões de docentes nas universidades. Preferem ficar isolados nos laboratórios, cuidando de seus próprios trabalhos. A lealdade deles é apenas com a própria carreira. VEJA - Há falta de dinheiro para a pesquisa nas universidades? CAMPOS - Não. Esse é o tipo de argumento falso, usado para dar um caráter legítimo ou mais popular às reivindicações políticas dentro das universidades. O problema no Brasil não é a falta de dinheiro, mas de idéias. Os recursos governamentais para a pesquisa universitária nunca foram tão abundantes. O volume de dinheiro duplicou entre 1979 e 1982. Nesses três anos, os gastos com ciência e tecnologia no país saltaram de 63,4 milhões de OTN (cerca de 240 bilhões de cruzados em valores atuais) para 138,4 milhões de OTN (522 bilhões de cruzados). Também nunca foram tão satisfatórias as condições de trabalho dos cientistas nas universidades federais. VEJA - Quer dizer que no Brasil há verbas suficientes para pesquisas? CAMPOS - Verbas para pesquisas nunca são suficientes, sobretudo se não forem bem aproveitadas. Se a sociedade, por meio de impostos e taxas, investe nos centros de pesquisas e obtém em troca avanços tecnológicos significativos, todo dinheiro é pouco para o trabalho dos cientistas e pesquisadores. O Brasil ainda gasta só 0,6% de seu Produto Interno Bruto em pesquisa e desenvolvimento, enquanto os Estados Unidos, por exemplo, gastam quase 2,5% do PIB nessa área. A diferença é que o investimento americano em ciência é mais produtivo que o brasileiro. Além disso, existem distorções graves quanto à aplicação desses recursos. Há um fosso muito grande entre o ensino e a pesquisa. VEJA - Qual é a conseqüência desse distanciamento entre pesquisa e ensino? CAMPOS - A conseqüência é que, enquanto se multiplicam os centros de formação pós-graduada e os centros de pesquisa, a qualidade do ensino nas universidades só piorou nos últimos anos. É como se a cabeça andasse para a frente e o resto do corpo fosse para trás. Existem centros de pesquisa no Brasil em condições de competir com qualquer outro centro de pesquisa de ponta no exterior. Temos, de um lado, uma pesquisa científica em crescimento acelerado e, de outro, um ensino precário. Se a comunidade científica não reassumir seu compromisso com o destino das universidades e com a melhoria do ensino de graduação, em breve não terá mais onde estimular e recrutar talentos para a própria continuidade do seu trabalho. Não é possível construir um sólido edifício científico com base universitária tão deficiente. VEJA - Para melhorar a qualidade de ensino não é precisoo melhorar também o salário dos professores nas universidades? CAMPOS - Essa é outra das grandes mitificações atuais do meio universitário brasileiro. O professor está ganhando muito para o pouco trabalho que realiza. É óbvio que o professor de uma universidade brasileira ganha salário inferior ao de uma universidade americana. Em contrapartida, trabalha menos e é intelectualmente mais preguiçoso. VEJA - Como assim? CAMPOS - A ociosidade dos docentes nas universidades brasileiras é de 20% em média por semestre. Ou seja, vinte em cada 100 professores não aparecem para dar uma única aula em seis meses. Há casos absurdos, como o do Departamento de Pesquisa Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em que existem cinqüenta professores sem fazer absolutamente nada. Pode-se argumentar que, se o professor não está na sala de aula, deve estar fazendo pesquisas ou desenvolvendo uma tese qualquer, mas isso também não é verdade. Oitenta por cento da produção científica nacional é resultado de 10% dos programas de pós-graduação. Os outros 90% não produzem absolutamente nada. Nem nos laboratórios nem nas salas de aula. VEJA - Como se chegou a essa situação? CAMPOS - A origem de tudo está na reforma universitária de 1968, que desvinculou a produção científica da atividade pedagógica. A idade do ouro da ciência no Brasil chegou tarde e de forma autoritária. Nos Estados Unidos ou na Europa, a alavanca da pesquisa e do desenvolvimento foi a guerra fria. Os gastos americanos com ciência deram um salto extraordinário depois do lançamento da nave soviética Sputnik. Para não perder essa corrida, os Estados Unidos investiram pesado em pesquisas e obtiveram resultados práticos. VEJA - E no Brasil? CAMPOS - Aqui, a idade do ouro da ciência não veio impulsionada por rivalidades nacionais pela liderança científica, mas por inspiração da doutrina militar de segurança nacional. Não veio no rastro de nenhum esforço de guerra, mas sob o patrocínio de um regime militar autoritário. Faltou um projeto nacional de desenvolvimento científico e tecnológico. A reforma criou os programas de pós-graduação e doutorado, que não dependem de verbas da universidade e têm administrações praticamente autônomas. A rigor, esses programas não dão nenhuma contribuição significativa à universidade. Os bons pesquisadores migraram para esse gueto avançado de pesquisa científica no país. VEJA - Que vantagens esses pesquisadores têm em relação aos professores que ficam nas salas de aula? CAMPOS - Eles são dispensados da carga horária normal para fazer seus trabalhos e têm dinheiro para comprar equipamentos e viajar ao exterior. Na sala de aula ficaram os medíocres, que formam o baixo clero de hoje. Não há integração entre ensino e pesquisa. Em 1968, havia menos de 300 000 estudantes matriculados nas universidades federais. Hoje, são mais de 1,5 milhão. As universidades transformaram-se de pequenas instituições em organizações de ensino de massa. Aumentaram em quantidade e perderam em qualidade. VEJA - O que sobrou para os estudantes? CAMPOS - Nada. Os alunos não têm acesso a esse primeiro mundo do conhecimento e da pesquisa. O estudante universitário hoje está perdido. Tem um enorme desencanto com a universidade. A cada ano, aumenta o número de alunos que mudam de área. Alguns começam a freqüentar o curso de Engenharia e depois trocam por Ciências Sociais ou Economia. Ou seja, o estudante já não consegue sequer fazer uma opção clara por uma área de estudo, por falta de orientação adequada. VEJA - A universidade não pode demitir os maus professores? CAMPOS - Um dos grandes males da universidade federal brasileira é a estabilidade do professor no emprego. Ele presta concurso, é contratado e vira funcionário estável. Não há como penalizar o mau professor. A universidade é corporativista. Quem avaliar ou criticar um colega hoje é acusado de abrir brechas na solidariedade universitária. Isso é puro cinismo. É uma forma de um livrar a cara do outro. A unversidade brasileira tem pavor de avaliações. O baixo clero prefere criar comitês internos de avaliação, que ele mesmo controla. As pessoas têm medo da avaliação pelo simples fato de que ela pode revelar o total descalabro. VEJA - Quais são as soluções para os problemas da universidade? CAMPOS - O que está em jogo no Brasil hoje é a própria ética acadêmica. É nela que está a saída para o beco em que se meteu a unversidade brasileira. As grandes inteligências têm que assumir sua responsabilidade intelectual dentro dessas instituições. Têm que enfrentar o baixo clero e impor o critério da competência. É preciso perder o medo do patrulhamento. VEJA - O que é ética acadêmica? CAMPOS - O professor universitário tem um compromisso fundamental com os estudantes. Isso significa que ele não fará proselitismo no exercício de suas funções. Ele deve propiciar todas as condições para que o estudante forme sua própria convicção. VEJA - O professor deve esconder suas convicções políticas? CAMPOS - Não. É claro que ele não vai abdicar de suas opiniões ou até deixar de manifestá-las. O fundamental é que ele faça o melhor dos esforços para apresentar aos estudantes, de forma honesta, as alternativas em que ele próprio acredita. O professor também não pode desconhecer seus compromissos éticos com os colegas e com a sociedade. Isso inclui a tolerância com opiniões que divergem da sua, o dever da convivência civilizada com o pluralismo de idéias. A sociedade, por seu lado, despende considerável volume de recursos para manter as universidades. É inadmissível que o professor transforme sua função numa confortável sinecura. --- GOMES, Laurentino. As academias do ócio. Entrevista a Edmundo Campos. Veja , ed. Abril, 07 de dezembro de 1988, pág. 5, 6 e 8.