Dez anos de um ano inesquecível por Marcelo Mugnol Abatido por um duro golpe em 1999, o Caxias reuniu forças e no ano seguinte deu a volta por cima, conquistando o Campeonato Gaúcho (da versão impressa) O quase gol, a bola raspando junto à trave, o montinho artilheiro que trai o goleiro, tudo isso e muito mais, pode achar a desculpa que quiser, é o resumo da derrota. O quase nunca é, e nunca será, sinônimo de vencer. O quase é o primo pobre e feio da derrota. E aí vem todo aquele trololó de “se eu tivesse feito isso, se tivesse corrido mais, se… se… se…” para tentar justificar o injustificável. Calar-se e voltar a trabalhar é o melhor remédio para curar a ressaca de uma derrocada. É o que fez o Caxias na virada de 1999 para 2000. O Caxias quase subira para a Série B. Na última partida, contra o Serra, o centroavante Adão quase fez um gol nos acréscimos. Na primeira, no Centenário, vitória do Caxias. Na segunda, no Espírito Santo, vitória do Serra. E na terceira e derradeira, também fora, empate sem gols e classificação do Serra ao quadrangular que definiria os dois times que chegariam à B. “No vestiário tava todo mundo chorando”, emociona-se o então presidente do Caxias, Nelson D’Arrigo, 52 anos. “Lembro como se fosse hoje, o meu filho, o Daniel, agarrado nas minhas pernas chorando sem parar. Me arrepio de falar disso. Aí o nosso camisa 5, o Ivair, disse assim pra mim: ‘Presidente, dessa vez não deu não. Mas no ano que vem vai dar’. Foi f*** aquilo.” “Lembro do presidente D’Arrigo consolando o filho”, recorda Adenor Bacchi, o Tite, 48 anos. “P*** q** p****, não era possível aquilo. O time jogando o que jogou naquela temporada. Fizemos uma Sul-Minas brilhante, ganhamos do Internacional de 2 a 0, na estreia do Paulo Autuori e com o Dunga em campo. O Inter não chutou uma bola contra nós. Foi uma desgraça aquele time não ter chegado ao quadrangular final da série C”, avalia Tite. “Estava um clima pesado na volta do Espírito Santo. Estávamos no ônibus e eu pensava: ‘Esse grupo tem de permanecer junto’. Me emociono de falar disso, me arrepio todo de lembrar daquele momento. No ônibus falávamos muito sobre isso, a equipe queria permanecer unida, era o sentimento de todos”, relata Tite. Hoje, distante quase 10 anos do mais importante título do Caxias, é fácil dizer que manter o mesmo time, equipe técnica e diretoria foi a melhor escolha. Mas é preciso imaginar o clima de cobrança da torcida, imprensa e um número incontável de invejosos e corneteiros. Para entender o tamanho da pressão, é preciso reconstituir o ano de 1999. Neste ano o Juventude da Era das Vacas Gordas, herança da Parmalat, conquistava a Copa do Brasil, diante do Botafogo, fazendo silenciar o Maracanã lotado de alvinegros. Imagine, então, como era triste e chato para todos no Caxias (do porteiro do Centenário ao presidente) ter de aguentar o constrangimento da própria torcida pelo insucesso na Série C e ainda a gozação dos papos, que esfregavam seu sucesso na cara dos grenás. Se no Juventude parecia jorrar dinheiro das torneiras, no Caxias havia minguados recursos e uma disputa interna velada, mas barulhenta. No Centenário, de um lado da mesa sentavam-se os que apontavam com desprezo as causas do fracasso; do outro, os que tentavam gritar mais alto para fazer valer a persistência, na crença de que dias melhores viriam. “Nós éramos meia dúzia de gatos pingados trabalhando pra c******”, lembra Marcus Vinicius Caberlon, 54 anos, diretor de futebol do Caxias na gestão de D’Arrigo. “Dois fatores foram determinantes para a conquista do título de 2000”, revela Gilmar Dal Pozzo, 40 anos, então goleiro do Caxias, hoje treinador do Veranópolis. “Primeiro foi a manutenção do técnico e do elenco de 1999, mesmo com o insucesso na Série C. E segundo, a diretoria comprou uma briga com a imprensa e a torcida, pra nos bancar e bancar o treinador. Mas aí, quando tinha salário atrasado, a gente ajudou o clube e bancou sem reclamar. Fomos campeões com três meses de salário atrasado. Nenhum jogador, se não fosse identificado com o clube, iria ser campeão desse jeito”, orgulha-se Gilmar. A diretoria do Caxias, naquele período, tentava não deixar o assunto vazar. Afinal de contas, é vergonhoso não conseguir honrar com suas obrigações. No entanto, e é bom esse distanciamento, a cobrança talvez fosse ainda mais intensa, pelo menos por parte da imprensa, porque o Juventude não tinha esse problema. Parecia que o Caxias tinha virado um primo ainda mais pobre do que já era. “A gente podia demorar, mas pagava”, reconhece D’Arrigo. “O Tite fazia a parte dele e segurava o time no vestiário, mas aí às vezes ele aparecia e dizia ‘pô, presidente, não tô mais conseguindo segurar, tem de liberar pelo menos um pagamento’. Então eu dizia: ‘querem receber no domingo, então façam o resultado na quarta-feira’. Então a gente arrumava o dinheiro e pagava”, revela D’Arrigo. Uma passagem contada pelo próprio Tite reitera seu comprometimento e identificação com o clube desde que decidiu abandonar o posto de comentarista esportivo da Rádio Caxias, em 1998, para voltar a ser treinador no Centenário. “Por causa de maus resultados na primeira fase do campeonato gaúcho eu tava balançando, na época até o Seu Ênio Costamilan saiu. Então o presidente, o D’Arrigo, me olhou e disse: ‘eu não entendo muito de futebol, mas sei que o nosso time é bom. Se entramos nessa m**** juntos, vamos sair juntos dessa m****’. Não é pra se doar? Quando o cara usa ‘nós’ é porque ele se compromete”, ensina Tite, emocionado. “Tá sendo legal esse papo aqui. Porque desde o dia 21 de junho de 2000 que não nos reuníamos pra falar dessas histórias. É claro que a gente comemorou, tomou champanhe, saiu pra jantar. Mas não sentamos mais pra lembrar do que passamos pra ganhar esse título”, agradece D’Arrigo, referindo-se ao encontro promovido por O Caxiense entre o ex-presidente e seus dois fiéis escudeiros daquele ano, Marcus Vinicius Caberlon e Zoilo Floro Simionato (ex-diretor financeiro), 43 anos. “Quando saí, deixei 800 sócios e um monte de corneteiro”, diverte-se D’Arrigo. “O futebol aproxima, mas o resultado afasta. E se eu não tivesse sido campeão talvez não tivesse tanta gente que não gosta de mim lá dentro do Caxias”, avalia. Nelson D’Arrigo foi vice-presidente na gestão de 1994 a 1996, quando o presidente era Marcos Guerra. “Em 1994, o Nelson foi convidado pra ser o presidente do Caxias. Aí o Nelson olhou para os conselheiros do Caxias e perguntou: ‘O que é que eu preciso fazer pra ser campeão?’. Tu te lembra?” pergunta Caberlon, desviando o olhar do repórter e fitando D’Arrigo. “Lembro”, responde D’Arrigo, sorrindo. E Caberlon prossegue, entusiasmado: “E aí, um cara que tem 30 anos de Caxias, um cara conhecido lá, respondeu que o Nelson tinha de esquecer essa ideia de ser campeão. Aí o Nelson disse pra eles: ‘Então não quero ser presidente’”, diverte-se Caberlon. Três anos depois, Nelson D’Arrigo assumiu como presidente do Caxias, e seguiu até 2000. “Demoraram cinco anos pra pintar no muro do estádio ‘Caxias Campeão Gaúcho’. Falam muito do Seu Francisco Stedile, mas esse cara aqui”, diz Caberlon, apontando para D’Arrigo, “fez tanto para o Caxias quanto o Seu Stedile. Só que não é reconhecido”. “Tenho uma gratidão pelo D’Arrigo e o Caxias tem de ser grato a ele e a todas as pessoas que trabalharam com ele. Foi muito bonito ser campeão no Caxias. Foi uma lição de vida pessoal e profissional”, avalia Tite. O técnico lembra de outro episódio que o tocou no aspecto pessoal. “Estávamos indo pra final contra o Grêmio e fizemos um churrasco. O Seu Ênio Costamilan disse pra mim: ‘Tite, fui no médico e ele me disse que estou com um problema e tenho de me operar. Disse pro médico não me operar porque não quero morrer antes de ver meu Caxias campeão’.” Antes ainda de falar sobre as finais contra o Grêmio megamilionário da ISL, é preciso falar mais do malfadado quase. O Caxias, entre 1999 e o início de 2000, quase assinou também contratos milionários. “O primeiro foi o banco Bozano, Simonsen”, conta Zoilo. “Chegaram a montar uma diretoria no clube, e para isso tivemos de nos afastar, dizendo que iam investir milhões e, claro, que iam pagar tudo o que eu já tinha investido no clube”, lembra D’Arrigo. Como o Bozano não conseguiu levantar por si um centavo, queria morder os empresários locais. Aí, D’Arrigo bateu forte na mesa e não permitiu. Voltaria a ser o presidente, mas desta vez com uma conta ainda maior para pagar, porque o banco já havia feito contratações de jogadores. “Voltei e botei mais um monte de dinheiro”, dá risada, hoje, D’Arrigo. “É, mas saiu com o título”, aplaude Caberlon. O outro quase negócio foi com o Roma, da Itália. “Fizemos um contrato com o Roma e, quando chegou na hora de assinar, nos tiraram da diretoria e montaram um conselho paralelo”, conta, D’Arrigo. “Montamos todo um projeto que foi aceito pelo pessoal do Roma, mas quando chegou a hora de assinar o contrato, o Caxias nos tirou de campo”, diz Zoilo. “É claro que o Roma deu pra trás, né? Deve ter pensando, ‘não vamos assinar com o Caxias, porque esse clube é uma bagunça’. Como é que iam confiar desse jeito?”, questiona, indignado, D’Arrigo. A solução, por mais que retumbasse forte no caixa da Intral, empresa da família D’Arrigo, era colocar a mão no bolso e pagar a reestruturação do Caxias. Também é preciso reconhecer as valorosas contribuições que vinham de toda parte, de empresários a torcedores ilustres, como o cartunista Carlos Henrique Iotti. “Uma vez recebi meu pagamento num envelope que tinha vários cheques, e um deles era do Iotti”, revela Tite. Imagine todos esses elementos extra-campo somados ao altíssimo poder de fogo de Juventude, Grêmio e Internacional. Difícil era encontrar, antes de iniciar o Campeonato Gaúcho de 2000, alguém que apostasse no Caxias. Enquanto o trio privilegiado (Ju, Grêmio e Inter) esperava para entrar na segunda fase da competição, o Caxias precisou passar por uma seletiva. Não foi fácil, e a instabilidade financeira afetava o time. “Na fase classificatória viemos jogar em Veranópolis. E tinha toda aquela história de salário atrasado, eu já tinha duas filhas, e conta de luz e água pra pagar. Eu vim jogar meio desmotivado, vim a meio pau. Tomamos 4 a 2 e eu fui muito mal na partida. No dia seguinte, o Tite nos reuniu no vestiário e o primeiro em quem ele deu mijada fui eu. E olha que o Tite é padrinho do meu casamento. Ele me disse que, se não estivesse satisfeito, eu que pegasse as minhas coisas e fosse embora”, relata Gilmar, goleiro vice-campeão em 1990 e campeão em 2000. “O Tite é elegante pra falar. Já eu sou mais ignorante, mas aquele dia o Tite veio pra dentro de mim. Fiquei revoltado, cheguei em casa e disse pra minha esposa: ‘Ó, Cláudia, o homem ficou louco’. Mas como comandante ele tinha de fazer isso. E aquele foi o nosso ponto de arrancada. No dia seguinte fomos jogar contra o Avaí e ganhamos de 2 a 1. Teve um pênalti a favor do Caxias no final do jogo e o Tite me mandou bater. Fiz o gol da vitória e nos classificamos para a próxima fase da Copa do Brasil”, conclui Gilmar, citando a dupla jornada do Caxias, que naquela altura disputava a seletiva para o Campeonato Gaúcho e a Copa do Brasil. “Vou te contar uma coisa. Teve um Ca-Ju, não lembro bem se em 1999 ou 2000, acho que em 2000, em que um grupo de conselheiros desceu no vestiário pra nos oferecer premiação extra caso a gente vencesse a partida. Coisa normal no futebol. Mas olha só a reação do grupo”, faz suspense Tite. “O Maurício (meio-campo) pediu a palavra e disse assim: ‘agradecemos o incentivo, mas queremos pedir uma coisa a mais de vocês. Queremos que vocês ajudem a direção e o presidente a conseguir recursos pra pagar os nossos salários. Queremos que vocês se empenhem pra que o clube possa prosperar e sanar as dívidas. E, por isso, abrimos mão do prêmio’. E ninguém contestou. Quando ele terminou de falar, eu disse pra mim mesmo: ‘que grupo especial é esse’”, emociona-se Tite. Com um conjunto de atletas que não pensava apenas na bola, nem só em dinheiro, mas sobretudo na união do clube, era difícil mesmo o Caxias não ganhar o campeonato. “Naquele ano o Caxias só não venceu o XV de Campo Bom. Porque naquela fórmula, que acho a melhor, de todos contra todos, em turno e returno, o Caxias jogou com todo mundo. É um título incontestável”, vibra Caberlon. Zinho, meio-campo do Grêmio, ganhava um salário de R$ 200 mil, mais do que a folha de pagamento inteira do Caxias. Além dele, o tricolor da capital tinha o argentino Amato, o prodígio Ronaldinho Gaúcho, o guerreiro Roger e um sem fim de nomes de peso. Mas foi o poder de fogo do Caxias que começou a ser notado no Estado. “Não vou ser pretensioso, mas o meio-campo com Ivair, Titi, Maurício e Gil Baiano, além de eficiente, era muito bonito de ver jogar. Eles criaram ao longo do campeonato um nível de entrosamento maravilhoso”, recorda Tite. O Caxias já havia vencido o primeiro turno do campeonato em cima do Grêmio, em pleno Estádio Olímpico, por 2 a 1. “Os jogadores me entregaram a camisa do Gil Baiano, suja de sangue e assinada por todos, na pizzaria Paparella, quando fomos comemorar o título do primeiro turno”, recorda D’Arrigo. E novamente o Caxias iria enfrentar o poderoso Grêmio na finalíssima. No primeiro jogo, no Centenário, dia 14 de junho, o esquadrão grená atropelou o tricololor: 3 a 0. “Foi uma vitória ao natural”, sintetiza Paulo Turra, capitão do Caxias Campeão Gaúcho em 2000. Não há nenhum tom de soberba nessa declaração. No final do primeiro tempo de um jogo em que só o Caxias atacava, Gil Baiano voou pra cabecear um cruzamento de Jajá e abriu o placar. O quase começava a ser deixado no passado. No segundo tempo, o Caxias manteve o Grêmio acuado. O juiz marcou uma falta na quina da grande área. Ivair tomou distância e, quem sabe lembrando do que dissera a D’Arrigo no Espírito Santo, chutou forte. Sílvio, reserva de Danrlei, não segurou o tirombaço. Encerrando a fatura – para alívio tricolor, porque poderia ter sido muito mais –, Márcio dominou um cruzamento toscamente desviado pela defesa gremista, ajeitou com tranquilidade e chutou forte, de perna esquerda. No placar do Centenário e da história do futebol gaúcho, Caxias 3 x 0 Grêmio. O último confronto entre Grêmio e Caxias, marcado para o domingo, dia 18 de junho, no Olímpico, foi encarado pelo tricolor como um Kosovo, numa analogia idiota à disputa sangrenta na Iugoslávia. “Lembro que o D’Arrigo puxou pra ele aquele conversa de Kosovo e disse: ‘a coisa vai ser decidida dentro do campo, vamos pra lá pra ser campeões’”, conta Tite. A direção do Grêmio conseguiu cancelar o jogo de domingo, por causa das chuvas. “Eles fecharam a drenagem do Olímpico”, atesta Caberlon. “A primeira coisa que fiz ao chegar no estádio foi ver o campo suplementar, e como lá não havia poça d’água… não precisa dizer mais nada”, corrobora Tite. Depois de muitas farpas trocadas nos bastidores, o jogo foi transferido para o dia 21 de junho de 2000, uma noite de quarta-feira gelada que os corações grenás tornaram tão quente quanto uma tarde de verão. “Fizemos um baita jogo, bom pra c******, emocionante. Não queria perder aquele jogo. Marcaram um pênalti esdrúxulo no final. Aí o Gilmar defendeu e foi consagrado, uma bênção. E na sequência o Jairo Santos deu um bago pra longe, então o Simon apitou o fim do jogo e invadimos o campo”, relata Tite. “Eu tive certeza e convicção de que pegaria o pênalti. Eu sempre estudo muito o adversário e estava estudando o Ronaldinho. Quando ele botou a bola no lugar, vi a postura e sabia onde ia bater. A relação do pênalti que peguei é como a da conquista do título. Nos preparamos pra conquistá-lo. As coisas não acontecem por acaso”, ensina Gilmar, responsável por segurar o 0 a 0. Os mais de 30 mil torcedores gremistas que foram ao Olímpico assistiram de camarote à queda do milionário Grêmio diante do modesto Caxias. Era a velha e conhecida disputa entre Davi e Golias. Os sinais estavam sendo apresentados a todo instante, coube ao Grêmio ignorá-los e pagar por isso. E coube ao Caxias trabalhar e honrar as cores grená, branco e azul, mesmo com salários atrasados. Foto: O ex-presidente D’Arrigo, com a taça de 2000, recusara a presidência seis anos antes ao ouvir, dentro do clube, que não devia pensar em ser campeão | Crédito: Maicon Damasceno/O Caxiense